Sinopse
Clint, um homem atormentado pelo passado, decide se isolar em uma casa nas montanhas. Nesse ambiente frio e hostil, ele vive sozinho e, em alguns raros momentos, interage com viajantes e nativos que não falam seu idioma e que visitam sua cafeteria. O isolamento, porém, não é o bastante para que Clint encontre paz. Certa noite, confrontando seus problemas, ele acaba embarcando em uma viagem interna por meio de sonhos, memórias e delírios. Em Sibéria, Abel Ferrara repete sua parceria com o ator Willem Dafoe. Juntos, eles voltam a explorar a intimidade e as aflições do homem, como fizeram em Tommaso (2019) e Pasolini (2014), mas de uma forma mais mítica e lúdica.
Parte da Perspectiva Internacional e dirigido pelo experiente Abel Ferrara, com Willem Dafoe, Dounia Sichov e Simon McBurney no elenco. Depois de passar pelo Festival de Berlim o filme chega na Mostra já deixando todos os cinéfilos sem saber no que pensar.
Crítica
“Sibéria” é um ótimo exemplo de ame-o ou deixe-o, um filme provocador que não possui uma estrutura propriamente dita já que estamos entrando na mente de Clint – vivido por Willem Dafoe – e vivendo junto com ele toda a angustia e pesadelo que o cerca.
O filme se passa em diversos locais, e cada um com mentores diferentes todos profetizando algo ao nosso protagonista. Da Sibéria gelada ao árido deserto, vamos adentrando cada vez mais a consciência do personagem vendo quase que instantaneamente a construção de um pensamento.
Clint é dono de um bar na gélida Sibéria, onde vive solitário mas nunca sozinho. E em seu cenário branco da neve vamos pincelando fatos sobre a vida deste homem até então comum, e vemos sua luta interior enquanto fala consigo mesmo como se fosse com outra pessoa.
O mais interessante de se notar é que o filme conseguiu ter diversas opiniões diferentes, ao escutar os comentários de amigos e colegas notei que uns viram no filme um novo formado de cristianismo, ou já está vendo mais um filme relacionado a loucura pura, e eu, vi um filme que bebe do pai da psicanálise sobre o relacionamento idealizado de antropofagia entre pais e filhos. Abel Ferrara conseguiu ultrapassar a barreira entre o real e o subconsciente nos fazendo ver não somente o filme mas a nossas próprias ideias sobre a loucura interior.
Ao meu leigo ver, o filme relata a luta psicológica entre o pai idealizado e o real. O tema freudiano sobre pai e mãe volta a todo momento onde Clint dorme com uma diversidade de mulheres, seja negra, vietnamita, branca, gorda, magra, com deficiência ou grávida, sempre em busca de algum conforte da alma que está do lado de fora de seu corpo. Mais para frente descobrimos que ele mesmo não esteve com sua mãe nos últimos momentos de vida dela e esta procura em todas as mulheres jamais sessará.
Enquanto isso a imagem do pai continua intacta, idealizada e quase inatingível, e somente após transar com a mãe é que Clint, como em um conto edipiano, pode ficar ao lado do pai em sua cabeça tendo um status de homem.
Porém, a morte de seu pai lhe trouxe atormento ao invés da liberdade psicologicamente dita e isso o segue pelo resto da vida. Esse atormento lhe da prazer pois o apego ao sofrimento é a motivação de um homem que se encontra a beira do histerismo. E ai entra a maravilhosa atuação de Dafoe que vive um homem comum, nada de super vilões ou faroleiros loucos, somente um homem abandonado que possui um vazio no lugar de alma.
Ultrapassando o moralismo sem medo, “Sibéria” que se mostra um filme não-linear acaba por fim sendo claramente linear no âmbito psicológico. Entre encontros aleatórios que vão além do tempo-espaço vemos da construção à destruição da psique onde Clint confronta seu pai, sua mãe e finalmente liberta sua alma dançando com crianças para no final poder comer um peixe que representa seu pai e agora está sendo absorvido por ele. Tal qual a teoria de que devemos matar – simbolicamente – nossos pais interiores para conseguir uma identidade própria.
Mas como disse, este é um caso de filme ame-o ou deixe-o, suas cenas desconexas e a quantidade de mulher pelada sem uma função qualquer pode irritar algumas pessoas, como esta que vos escreve. Digo que se fosse presencial eu não pensaria duas vezes na hora de abandonar, mas graças a comodidade que o evento online trouxe eu consegui ir até o final e posso afirmar que este é um filme que será falado por um bom tempo e estudado por alguns.
Outro filme de Abel Ferrara que se encontra no catálogo da Mostra deste ano é o “Sportin’Life” que se torna um complemento para o “Sibéria”, um documentário pré-pandemia com entrevistas e arquivos pessoais de Abel e Dafoe durante a promoção do filme em Berlim.